MP 914 é mais um ataque autoritário e covarde à educação superior pública

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Por Romero Venâncio e Saulo H. S. Silva*

Em pleno findar do ano de 2019, quando o sistema federal de educação e o Parlamento brasileiro iniciavam o recesso natalino, eis que a Presidência da República confere às Instituições Federais de Ensino um grande “presente de grego”. Um verdadeiro cavalo de Tróia que é típico de um governo que faz do autoritarismo e do obscurantismo facetas estruturantes de suas ações. Pois bem, se já não bastasse ter sido um ano de inúmeros ataques às universidades e institutos federais, e às suas comunidades acadêmicas, o governo resolver nos atacar novamente, e mais uma vez de forma covarde e autoritária.  

A Presidência da República, representada por uma figura inominável e fazendo uso do artigo 62 da Constituição Federal, resolveu instituir uma Medida Provisória (914/2019) para modificar o processo de escolha da lista tríplice para o cargo de reitores e dirigentes das universidades federais, institutos federais e o Colégio Pedro II. 

De maneira geral, a MP visa obrigar a consulta à comunidade acadêmica para a formação da lista tríplice para o cargo de reitor a ser enviada ao MEC (art. 2º). Segundo o documento, o procedimento da consulta deverá ser realizado por meio de voto direto, preferencialmente eletrônico, e organizado por um colégio eleitoral instituído com essa finalidade (art. 3º). A consulta deverá ser composta por votos de docentes, técnico-administrativos e de estudantes, com cada categoria tendo as seguintes porcentagens para a determinação do coeficiente eleitoral: 70% para docentes, 15% para técnico-administrativos e 15% para o corpo discente (art. 3º, § 1).  O reitor será escolhido a partir desta listra tríplice e, no caso de desistência de alguma candidatura, a MP advoga que a lista deverá ser completada com a inclusão de outro candidato/a (art. 6º, §1). O reitor nomeado indicará o Vice-reitor, os cargos em comissão e função de confiança (art. 6º §§ 2 e 3), indicará os diretores dos campi (art. 8º) e diretores e vice-diretores das unidades (art. 9º).  

A MP ainda advoga que em casos de vacância e da impossibilidade de homologação do resultado da consulta haverá a designação de um reitor pro tempore (art. 7º). A medida também acaba com a reeleição de reitores, exige o afastamento do candidato de cargos em comissão ou função de confiança na respectiva instituição (arts. 4º e 5º), e ainda altera ou revoga por completo três leis (5.540/1968, 9.192/1995 e 11.892/2008). 

A MP interfere decisivamente na democracia interna das instituições e na autonomia universitária sobre a organização “didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial” (CF. Art. 207). Sobre esse aspecto, pontuamos os seguintes aspectos que foram alterados:

1. Preliminarmente, há de se notar o autoritarismo e desrespeito com o Sistema Federal de Educação. Não houve nenhum debate com as comunidades e, só por essa razão, a MP deve ser rejeitada.

2. Ainda preliminarmente, ressaltamos que a intervenção do Governo através de MP é flagrantemente inconstitucional por não atender ao previsto no artigo 62 da Constituição Federal que requer urgência para a edição de medidas provisórias. Qual a urgência de regular a eleição de dirigentes, que já é regulamentada por lei (9.192/1995 e 11.892/2008)?

3. Com a MP, altera-se a possibilidade de eleição dos dirigentes alternativamente por um Colégio Eleitoral (art. 2º.). Ou seja, a possibilidade de escolha se reduziu a uma única: consulta com 70% para os docentes, 15% para os técnicos administrativos em educação, 15% para discentes. Isso vale dizer que outras fórmulas de escolha são vetadas. Vale ressaltar que a comunidade acadêmica defende, ao contrário, a democracia interna na escolha de seus dirigentes e, portanto, a forma estabelecida por essa consulta vai de encontro à possibilidade de escolha democrática no interior das instituições.   

4. A MP acaba com a possibilidade de reeleição para Reitores e Diretores de Unidade (art. 4º, parágrafo único e art. 9º, § 2º). Não cabe mais às comunidades decidir sobre o tema. O texto é mal escrito e pode ser interpretado de outra maneira.

5. O artigo 6º lança uma confusão ao prever que a lista tríplice será formada pelos três candidatos mais bem votados. Havendo desistência de algum dos candidatos após a eleição e até a composição da lista tríplice, há previsão de completar a lista com as candidaturas subsequentes até que se conclua a lista tríplice. Importante notar que não há previsão para o que poderá ocorrer se houver chapa única (caso que se deu na UFOP em 2008, para um exemplo), ou se houver apenas duas candidaturas, ou mesmo se houver renúncia de todas as candidaturas derrotadas (hipótese altamente provável!). O texto, redigido às pressas, traz graves problemas no que se refere à clareza e previsão de situações altamente prováveis. 

6. A MP acaba com a eleição para todos os outros cargos (de diretores de Unidade a chefes de Departamento). A esse respeito, é preciso esclarecer que tais eleições não são apenas momento para votação, mas oportunidades para os setores fazerem balanço de suas atividades e produzir coletivamente um planejamento para o próximo período, com transparência e democracia. A MP acaba com isso! Imaginem um(a) Reitor(a) indicando todos os Diretores, Vice-Diretores, Chefes de Departamento, Coordenadores de Curso de Pós-Graduação, Presidentes de Colegiado de Curso, etc.? Quem escreveu essa MP não compreende a complexidade da vida acadêmica, não tem vivência nas Instituições Federais e simplesmente deu vazão a delírios autoritários e centralizadores mesmo para casos, como esse, em que é contraproducente e estúpida tal centralização mesmo para o mais autocrático dos Reitores. Tal medida corresponderia à instauração deliberada da bagunça, pois vão se instituir processos paralelos, à margem da Lei e da vontade da comunidade acadêmica. A Lei virá não para regular as escolhas, mas para empurrar as Instituições para a realização de processos sem regras claras e republicanas.

7. Ao se imiscuir em assuntos internos das Instituições de forma inédita e sem nenhuma discussão ou preparação, vai exigir que as instituições alterem seus Estatutos (no caso daquelas que trazem previsão sobre processos que eram de sua rotina mais simples, como eleger chefias ou diretores). Imaginem dezenas de resoluções universitárias sendo enviadas ao MEC para aprovação de uma vez só e em tempo recorde haja vista a MP ter validade imediata e muitas instituições, como é o caso da Universidade Federal de Sergipe, já terem iniciado seus processos de consulta à comunidade para formação da lista tríplice. 

Como podemos perceber, além de imoral, a MP é inconstitucional por não cumprir com a urgência prevista no artigo 62, da CF, segundo o qual “em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei [...]”.  Tal medida, frisamos, não é relevante e muitos menos urgente! Só por isso já deveria ser rejeitada in limine. Por absurdo que possa parecer e, caso o Congresso não devolva essa MP declarada inconstitucional, ela deve ser rejeitada pelas razões que comentamos, dentre outras: o texto é mal escrito e desconhece a rotina das Instituições Federais de Ensino; tem um caráter autoritário quer na sua forma de construção quer no seu conteúdo; leva a uma piora da qualidade dos processos de escolha por reduzir a nada as possibilidades da comunidade decidir sobre a forma de escolha dos dirigentes; lança as Instituições em uma situação de grande instabilidade por não prever situações que certamente ocorrerão (destaque para não se ter nomes suficientes para a lista tríplice!); além de atentar de forma covarde contra a Autonomia Universitária prevista no artigo 207 da Constituição Federal.

A iniciativa do governo de editar uma MP em véspera de Natal e no início do recesso do Parlamento e do Sistema Federal de Educação, sem nenhuma discussão ou diálogo, mostra claramente o desrespeito e sua intenção de levar as Instituições Federais de Educação a uma situação caótica.

É hora das Instituições, em diálogo com o Congresso Nacional e com as comunidades, construir um aparato legal respaldado nos artigos 207 da CF e 53 da LDB, os quais estabelecem a Autonomia Universitária, de modo a encerrar com tais intervenções indevidas de governos de ocasião.

A legislação deve alcançar não apenas a escolha de dirigentes, mas as regras para o exercício de uma efetiva Autonomia "administrativa e de gestão financeira e patrimonial". É central, para tanto, que se tenha uma Lei aprovada pelo Congresso que materialize o preceito Constitucional estabelecendo o montante orçamentário e a sua forma de repasse e reajuste anual. As Instituições devem assumir como meta prioritária a luta pela Autonomia contra um governo incompetente, obscurantista e autoritário.

 

*Romero Venâncio e Saulo H. S. Silva são diretores da ADUFS – Associação dos/as Docentes da Universidade Federal de Sergipe.

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