Educação: o fosso é mais fundo

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Rodrigo Coutinho Andrade*

Enquanto a centralidade do debate sobre a educação no período de isolamento social abarca a realização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), a instrumentalização da relação ensino-aprendizagem mediada pelas tecnologias de informação e comunicação (TIC) na Educação Básica em todos os níveis de ensino, assim como as ações autocráticas para o incremento da regulação do Ensino Superior, inexorável das previsões para a ampliação da dualidade estrutural, milhões de jovens, adultos e idosos analfabetos, semianalfabetos ou que não concluíram a Educação Básica passam ao largo das preocupações institucionais – e das “lives” também. Tomamos como exemplo a simplória recomendação do Conselho Nacional de Educação (CNE) para a Educação de Jovens e Adultos (EJA), restrita apenas à consideração da vida dos estudantes para a continuidade dos estudos, levando em conta a relação educação-trabalho e a “garantia do padrão de qualidade”. 

Lograda ao ostracismo desde quando fora institucionalizada, a EJA nos dias atuais espelha de modo rotundo sua essência periférica, aligeirada, precária e insuficiente, com graves consequências para reprodução social e material dos trabalhadores ao longo da formação social brasileira. Fato que se intensifica nos dias atuais por meio das consequências da intensificação da precariedade do trabalho em suas novas morfologias como a uberização-terceirização total, a informalidade e as novas tipificações reificadas na vida do precariado, em sincronia com a perda das conquistas sociais e da dissolução das formas de organização e resistência da classe trabalhadora.

Marcada historicamente por campanhas-programas de alfabetização e escolarização com formatos aligeirados e compensatórios, tendo como último feito o Programa Brasil Alfabetizado (PBA), o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem), e o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica, na Modalidade de Jovens e Adultos (PROEJA) – todos estes em estágio definhamento, ou já encerrados –, encontra-se hoje, majoritariamente, no seio dos sistemas públicos de ensino, atravessando um trágico cenário de desmonte mesmo sendo a modalidade de ensino com a maior demanda no país. Primeiro pela extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) por meio do Decreto nº 9.465, de dois de janeiro de 2019, onde se situava a Diretoria de Políticas de EJA no Ministério da Educação (MEC), sendo alocada limitadamente na Secretaria de Alfabetização (SEALF); que até agora não apresentou nenhuma iniciativa para a EJA. 

Segundo, pela limitada inclusão no Plano Nacional de Educação (PNE), que prioriza somente a alfabetização da população acima de 15 anos e a elevação da escolaridade média da população entre 18 e 29 anos, indissociável dos pífios resultados das metas oito, nove e dez até o presente ano; que demarca também a falência do atual plano. Por fim, a EJA, além de conter o menor fator de ponderação no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), contabiliza a maior retração do financiamento no corpo das políticas educacionais executadas pelo MEC entre 2016 e 2019 – neste período, o orçamento pago para a EJA declinou de 485,4 para 21,2 milhões de reais. Ou seja, a EJA está sob responsabilidade dos estados e municípios, o que remete – hipoteticamente – ao período em que vigorava o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), quando essa modalidade de ensino fora excluída do fundo público federal, e as matrículas falseadas como ensino regular noturno.

Para mensurarmos o impacto de tais ações institucionais, que engloba toda população acima de 15 anos sem a conclusão do Ensino Fundamental, e os sujeitos sociais com mais de 18 anos que não findaram o Ensino Médio, de acordo com o Parecer CNE/CEB nº 6/2010, assim como a ineficácia da garantia à educação considerando o básico estabelecido pelo primeiro inciso do Artigo nº 21 da atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a obrigatoriedade da oferta escolar como regem o quarto inciso do Artigo nº 4 e o Artigo nº 37 do mesmo dispositivo institucional, assim como o Artigo nº 205 da Constituição Federal, exporemos os dados da demanda real-potencial presente e futura da EJA, e posteriormente a oferta para essa modalidade de ensino. 

Para início de conversa, ressaltamos que 70,3 milhões de jovens, adultos e idosos acima de 25 anos no Brasil não concluíram a Educação Básica – 52,6%. De acordo com os últimos dados sistematizados pelo Programa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (PNAD-IBGE) sobre a educação – 2018 –, o analfabetismo alcança 6,8% da população acima de 15 anos  – 11,3 milhões de brasileiros –, o analfabetismo funcional presencia a vida de 38 milhões de jovens, adultos e idosos entre 15 e 64 anos, 33,1% dos adultos e idosos acima de 25 anos não concluíram o Ensino Fundamental, 8,1% na mesma faixa etária contam apenas com o mesmo nível de ensino, e 4,5% abandonaram o Ensino Médio. Coaduna-se a isto a média de anos de estudo da população brasileira mensurada em 9,5 (número alcançado em 2015 pelos Emirados Árabes Unidos em 2015) com tendência de redução do coeficiente de variação a partir de 2016 – que, mesmo após a ascensão de 6,5 anos em três décadas, se mantém aquém dos 12 anos para a conclusão da Educação Básica, inferindo também no pífio avanço do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) nos últimos três anos.

Sobre a provável demanda futura, em 2018 3,9% das crianças entre 6 e 10 anos deixaram de frequentar os anos iniciais do Ensino Fundamental, assim como 13,3% da população dentre 11 e 14 anos. Acerca dos jovens em idade adequada para o Ensino Médio – entre 15 e 17 anos –  30,7% não presenciaram a rotina da escola, e 23,1% estão em etapas inadequadas. Em relação ao abandono, 1,5% dos estudantes saíram do Ensino Fundamental em idade regular, e 6,1% deixaram de frequentar o Ensino Médio no mesmo ano. Números que se agravam quando conferimos no “chão da escola” inúmeros estudantes “convidados” para os programas de aceleração dos estudos capitaneados pelo empresariado para que, indiretamente, ascenda o indicador de desempenho das escolas por meio da exclusão-oclusão da taxa de reprovação – referencial direto do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB). 

Dentre os motivos para a não-frequência, o trabalho predomina entre a população jovem masculina em 47,1%, abrangendo 29% mulheres brasileiras entre 15 e 29 anos, que também não frequentam as escolas nos dias atuais devido aos afazeres domésticos – contabilizado em 23,3% pelo PNAD-IBGE em 2018. Cenário que se agrava ao examinarmos os jovens que não trabalham e não estudam, que alcança 23% da população entre 15 e 29 anos. 

Saindo dos números brutos, as variáveis apontam plena convergência às contradições da nossa formação social e do tom das políticas educacionais nas últimas décadas. Sobre o último, as consequências do setorialismo excludente é nítida ao verificarmos que 21,5% da população acima de 65 anos se encontra em situação de analfabetismo, enquanto 1,6% pertencem ao segmento demográfico entre 15 e 24 anos. Fato que se coaduna à fala do então ministro da educação do governo Fernando Collor de Mello, José Goldemberg: “O adulto analfabeto já encontrou seu lugar na sociedade. Pode não ser um bom lugar, mas é o seu lugar. Vai ser pedreiro, vigia de prédio, lixeiro ou seguir outras profissões que não exigem alfabetização. Alfabetizar o adulto não vai mudar muito sua posição dentro da sociedade e pode até perturbar. Vamos concentrar os nossos recursos em alfabetizar a população jovem. Fazendo isso agora, em dez anos desaparece o analfabetismo”. Isto em 1991, ano seguinte do Ano Internacional da Alfabetização. O analfabetismo não desapareceu, mas o mesmo tom se perpetua.

Além de se concentrar entre os mais idosos, o analfabetismo pertenceu à vida de 9,1% da população negra e parda acima de 15 anos, e de 3,9% dos brancos em 2018. Em relação à situação geográfica, 17,5% dos residentes no campo se encontravam na mesma situação, enquanto tal fato alcançava 5,1% dos citadinos. Acerca da variável regional, a região nordeste, que detém o menor coeficiente de variação – 1,2 –, se destaca negativamente com 13,9% de analfabetos acima de 15 anos, enquanto no sudeste este dado alcança 3,5% no mesmo critério. Por fim, a fração mais pobre do país contabiliza 10,6% de analfabetos, enquanto no quinhão mais abastado este dado alcança 1,2%. Números que se repetem nos diferentes níveis de ensino em proporções diferenciadas, de acordo com os dados do PNAD-IBGE. E, mesmo considerando a redução deste fenômeno no país ao longo dos últimos anos, com tendência de estagnação futura a partir de 2017, observa-se casos de ampliação percentual nos estados, como o Pará, Amapá, Paraná, Mato Grosso e Distrito Federal. 

Mesmo com toda a demanda real-potencial para a EJA, ao longo da última década 1.051.919 matrículas foram subtraídas dessa modalidade de ensino de acordo com os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Enquanto em 2010 os estudantes da EJA abarcavam 8,3% do total de matriculados na Educação Básica no Brasil, em 2019 somaram 6,7%. Indissociável disto, impera o caráter público da EJA, que percentualmente supera todos os níveis e modalidades de ensino; pois no mesmo ano apenas 81.389 estudantes da EJA estavam matriculados no Ensino Fundamental de cunho privado dentre 1.937.583 alunos. Quando observamos a retração por meio das variáveis regionais, as regiões com maior demanda da EJA são as que apresentam maior decréscimo nos últimos cinco anos – só na região norte, entre 2014 e 2019, na primeira metade do período de vigência do atual PNE, aproximadamente 27,4% das matrículas deixaram de existir! Na região nordeste este número negativo alcança 8,7%, enquanto na região sul houve o acréscimo de 1,3%.

Além disso, os autodeclarados pardos e pretos representavam 45% dos matriculados na EJA em 2019, enquanto os brancos somavam 16%. Se compararmos com a totalidade da Educação Básica – 39% de pretos e pardos, e 32% de brancos – podemos concluir que além do protagonismo público, há maior concentração da população preta e parda, e da fração mais pobre da população brasileira– 20% dos piores rendimentos – nos assentos da EJA; o que nos permite dizer que essa modalidade de ensino tem como essência a educação dos excluídos no passado e no presente.  

Para além disso, sua concentração reside no segmento demográfico jovem – fenômeno categorizado como juvenilização da EJA por alguns estudiosos do tema, com algumas ressalvas cabíveis. Em 2019, 1.054.985 das matrículas foram preenchidas por jovens até 19 anos, enquanto 726.466 por adultos e idosos acima de 40 anos, explicitando o setorialismo do setorialismo. Fenômeno este provocado tanto pelo foco na juventude ao longo das décadas passadas pela elevada concentração de problemas societários como o desemprego, a renda, a criminalidade protagonizada-vitimizada, as doenças sexualmente transmissíveis, quanto pelos impactos das contrarreformas educacionais assentadas nos princípios do gerencialismo e do accountability educacional, que promoveu a exclusão de jovens da Educação Básica.

A presente radiografia expõe a rasa capilaridade dos sistemas de ensino para os jovens, adultos e idosos dos espaços formativos e, consecutivamente, da EJA no país, refletindo-se de modo imediato nas condições materiais da população brasileira em diferentes aspectos. No primeiro momento, de acordo com os dados do PNAD-IBGE de 2018, a escolaridade está intrinsecamente relacionada ao rendimento da população brasileira, assim como ao coeficiente de variação. Dentre os homens sem instrução, ou Ensino Fundamental incompleto, o rendimento médio domiciliar per capita somou 841 reais no ano discriminado, enquanto os que possuíam Ensino Superior tal cifra alcançou a média de R$ 4.125,00. Entre as mulheres, considerando a mesma premissa, a renda variou de 853 reais e 3430 da mesma espécie. Quando comparamos a variável raça, os dados são mais assustadores. A média salarial dos brancos sem instrução, ou Ensino Fundamental incompleto, supera em 845 reais a dos pretos e pardos com o Ensino Médio completo – R$ 1.101,00. O que nos leva a concluir que para além da escolaridade, outros fatores imputam a pobreza no país.

Em dados mais recentes, referentes ao primeiro trimestre deste ano, a população acima de 15 anos sem instrução recebeu em média R$ 919,00, enquanto os que concluíram o Ensino Superior obtiveram 4.938 reais, refletindo-se na pobreza absoluta – que atingiu, em 2018, 29 milhões e 306 mil brasileiros sem instrução, e 655 mil com Ensino Superior completo. Dado este que afeta inexoravelmente todos os poros existenciais, como por exemplo o esgotamento sanitário. 45,5% das casas da população sem instrução, ou Ensino Fundamental incompleto, não possuem rede regular de esgoto, enquanto entre os bacharéis e licenciados este dado alcança 16,7%. Por fim, no primeiro trimestre deste ano, 50,5% da PEA não havia concluído a Educação Básica. Dentre os desocupados, 12,2% da PEA, 55,1% não concluiu o Ensino Médio, e 69,5% da força de trabalho sem qualquer ocupação estão na mesma condição. 

Entretanto, não se trata aqui de expor um cenário com a célere premissa “em tempos de pandemia” apenas, mas desnudar a conjuntura e organicidade da escolaridade-escolarização da população brasileira acima de 15 anos, assim como reiterar a importância e a precariedade da EJA que se agrava nos dias atuais. Neste sentido, como crer nas medidas do MEC para o ensino remoto por meio do incentivo às novas tecnologias e do uso da internet, mesmo ante a ciência de que 33,5% da população sem instrução não possui acesso à internet? Qual o impacto dessas medidas para 66,2% dos brasileiros sem instrução que não tiveram acesso à educação em 2019? Ao mesmo tempo, como prescindir da qualidade educacional para os excluídos? E, por fim, em que sentido os princípios pedagógicos sob à ideologia da empregabilidade se ratificam em tempos de desemprego e informalidade para os matriculados na EJA?

Enquanto isso, avança a combinação entre a retração das matrículas e a ampliação da certificação dos estudos por meio do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA); ou seja, uma estratégia de ampliação da escolaridade pela certificação, aquém até do modelo supletivo. De acordo com os dados do INEP, em 2014 146.475 jovens, adultos e idosos se inscreveram no ENCCEJA, enquanto em 2018 foram 1.695.607 – ano em que contou com massiva divulgação nas redes sociais e nos meios de comunicação. 

O fosso é mais fundo. E o futuro não traz boas notícias pelos dados de evasão-abandono e pela distópica universalização da educação ainda nos anos iniciais.

 

Rodrigo Coutinho Andrade é doutor em educação pelo PPGEduc-UFRRJ, professor do Departamento de Geografia do IM-UFRRJ, membro do Grupo de Pesquisas sobre Trabalho, Política e Sociedade da UFRRJ (GTPS-UFRRJ) e do Grupo de Trabalho sobre Ensino da AGB-Niterói.

 

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