Este lugar não é seu, sr. Ministro

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Esta carta decorre da indignação gerada nos pais, mães, professores, professoras, crianças e jovens de todo país, frente aos desatinos do Ministro que ocupa a pauta do dia no que tange aos excluídos do Enem, da escola, dos direitos já assegurados pela Carta Magna do país e diretrizes daí decorrentes. Mas parece desconhecer. Os mais jovens que sonham em ingressar no ensino superior e evoluir nos estudos, coisa que está prevista na Constituição Federal, estão mesmo esquecidos por essa pasta. Basta ver o número de inscritos no Enem – o mais baixo dos últimos anos.

Difunde-se que o “Enem 2021 tem queda de 77% em candidatos que precisam de isenção de taxa de inscrição”. E “quem ganhou a isenção da inscrição e não compareceu à prova” não conseguiu nova isenção. Esquece-se que ao excluir, elitiza; e ao elitizar, trava o principal acesso do ensino superior a milhões de brasileiros que miram este nível como único caminho para prosseguir nos estudos e progredir na vida.

Ao afirmar em sua gestão uma política de exclusão, mata os sonhos dos excluídos. Os efeitos da pandemia também respingam nos sonhos dos jovens, mas o Sr. Ministro não vê, embora seja fácil notar o quanto os impactos da pandemia foi “sentido no número total de inscritos”, que caiu espantosamente.

Segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), 58% dos inscritos isentos da taxa faltaram no Enem 2020. Isso sinaliza que, antes mesmo de submetidos a acirrada seleção, muitos jovens foram reprovados, mesmo sem exame e, assim, excluídos do ensino superior e do propósito de evoluir nos estudos.

Sabe-se que este impeditivo tem a tendência de levar muitos desses jovens “a desistir do ensino superior” e, com efeito, diminuir a “taxa de escolarização líquida do país”, que já é baixa e pede socorro. Este acesso não é a garantia de sucesso, mas tem seu começo por aí. Outras políticas têm responsabilidade nisso. Profissionais recém formados e que, por conta de uma política econômica que não sabe combater o desemprego, nem tampouco a desigualdade social, se veem compelidos a se ocuparem em outros papéis para os quais não elegeram como primeira opção.

Este é apenas um ponto que está na pauta do dia. Outro, não menos importante, é o trato dispensado por V.Sa. às crianças, adolescentes e jovens com deficiência. É de total desatino afirmar que crianças deficientes atrapalham e são de “impossível convivência” escolar. Isso mostra que nada ou muito pouco sabe da LDBEN vigente, que assegura a essas crianças o direito de serem incluídas e integradas na educação básica. É lei Sr. Ministro!

E este direito pode e deve ser assegurado sem constrangimentos, sem tanta ignorância e desconhecimento dos propósitos a que a pasta que ocupa, diga-se de passagem, se destina. Ao afirmar que “crianças com grau de deficiência são de impossível convivência” sugere que essas crianças atrapalham e atesta sua ignorância frente ao papel para o qual o ministério, pasmem, de educação se presta. Educação para todos, amparada na diversidade, na inclusão autêntica, não nesse tal “inclusivismo” que V.Sa. contesta.  Falta-lhe conhecer a premissa basilar de educação: não há duas crianças iguais na face da terra e, por isso, há de se privilegiar aprender a conviver com o diverso de si e lidar com as diferenças.  

O que queremos dizer Sr. Ministro, ao intencionar mostrar a importância do diferente na educação, aproxima-se do poema de António Gedeão (1956-1967) ao mostrar a singularidade de cada folha. “Não há, não, duas folhas iguais em toda a criação. Ou nervura a menos ou célula a mais. Não há, de certeza, duas folhas iguais. (...) Umas são fendidas, crenadas, lombadas, inteiras, partidas, singelas, dobradas. Outras acerosas, redondas, agudas, macias, viscosas, fibrosas, carnudas. (...).  Nas formas presentes, nos actos distantes, mesmo semelhantes, são sempre diferentes.  Umas vão e caem no charco cinzento, lançam apelos nas ondas que fazem; outras vão e jazem sem mais movimento. Mas outras não jazem, nem caem, nem gritam, apenas volitam nas dobras do vento. E dessas que sou eu”.

Assim são as pessoas, Sr. Ministro. Algumas, distintas entre si, seguem, evoluem e vão; outras jazem e, sem mais movimento, se abrigam no chão, pois que não lhes deram passagem. Ao voltar para este poema, vi o quanto é ignorante e mal sabe que se aprende e se educa entre diversos de si. Se soubesse não diria que crianças com grau de deficiência atrapalham porque “de difícil convivência”. Que grosseria, Sr. Ministro!!!

Sua perspectiva de educação é frágil, porque em vez de incluir, exclui; em vez de enaltecer a pluralidade, diminui; em vez de trazer a dimensão humana, desumaniza; em vez de elevar os horizontes, inferioriza; em vez de reconhecer a heterogeneidade, privilegia a homogeneidade.

Sua mentalidade lembra os Liceus napoleônicos que, segundo o educador português Niza, presumiam que “todos deveriam ser ensinados como se fossem um só”. Pobre o país que tem um ministro como o Sr, pobre a educação que está sob suas rédeas, pobre futuro porque se faz pobre o presente.

Grupos de crianças deficientes, seja em que grau de deficiência se esteja falando, “ajudam-se muito uns aos outros.” Ademais, trazem o riso que muitas vezes falta no interior da escola, brincam muito entre os diversos de si. Alguns dos nossos filhos sempre voltavam da escola básica, após a convivência ora com amigo cego, ora amigo com Síndrome de Down, ora amigo autista, entre outros, não voltava mais o mesmo.

Sempre vinha com histórias que não se vê em livro algum, nem nas praças, nem nas ruas. Por isso, Sr. Ministro, a escola é “a invenção mais bonita da humanidade”, pois que é para todos.

Paulo Freire resume todas manifestações no Brasil afora frente a grande ocasião perdida de ficar calado. Adverte ele: “a intolerância e incapacidade de conviver com o diferente, de descobrir que o diferente é tão válido quanto nós ou às vezes melhor, em certos aspectos, é mais competente...O diferente não é necessariamente inferior, não existe isso. Mas a tendência da gente, ao rejeitar o diferente, é se considerar (...) o salvador do diferente e nunca o que é também a ser salvo pelo diferente (...) Essa intolerância que se vê é essencialmente anticristã. Não é cristã”.

Por fim, a deficiência que “atrapalha”, não é essa a que o Sr. se referiu, mas a deficiência que está incorporada nos seus poros, que dormita na sua mentalidade, que salta de seu despreparo, que marca seus posicionamentos apressados – seja em relação a ideia equivocada que tem sobre o engenheiro que se viu compelido a ser motorista de Uber,  seja em relação ao jovem que sonha em ingressar na Universidade Pública, seja em relação ao deficiente que tem o direito de ser incluído na escola básica, conviver com o diverso de si, ensinar e aprender na mutualidade e  na diversidade.

Narrativas de deficientes, relacionadas por Erving Goffman, parecem dizer melhor o que queremos dizer: “Tanto as mentes quanto os corpos saudáveis podem estar aleijados. O fato das pessoas “normais” passam andar, ver e ouvir não significa que elas estejam realmente vendo ou ouvindo. Elas podem estar completamente cegas para as coisas que estragam sua felicidade, totalmente surdas aos apelos de bondade de outras pessoas; quando penso nelas não me sinto mais aleijado ou incapacitado do que elas.” 

Assim, Sr. Ministro, quando pensamos na sua mentalidade e no que tem capacidade de afirmar com tamanha ignorância e estupidez não vemos nessas pessoas que atinges menos capacidade que V.Sa.

E quando pensamos nos seus defeitos, e estragos que gera com suas palavras tortas, se ao menos prestar mais atenção naquilo que esse grupo que diz “atrapalhar” às escolas, causaria menos constrangimentos.

Essas pessoas que tanto ofendeu e envergonhou, Sr. Ministro, além de ensinar a conviver com o diferente – princípio basilar da educação, ensinam também a dizer a palavra certa e amorosa a quem está esperando dessa pasta ações em favor dos excluídos, em favor da escola que acolhe e humaniza. E espera que, em vez de atacar e ofender, seja capaz de dizer “essas pessoas são importantes para mim e eu gosto de sentir que posso ajuda-las”.

São muitos defeitos e deficiências que o Sr. Ministro precisa reconhecer e corrigir, sobretudo este que se encerra na sua incapacidade humana de dizer e agir. É incomum, todavia, que “o homem com tal doença chegue a aperceber-se dela e, portanto, a ter pena de si mesmo” (Goffman) e, com efeito, deixe seu cargo para que um outro que reúne melhores condições de assumir uma pasta tão importante ocupe o seu lugar.

Que vergonha, Sr. Ministro, esse lugar não é seu!

 

Saudações acadêmicas,                                                                       

Profa. Dra. Eliana Sampaio Romão (UFS/DED)    

Profa. Dra. Isa Regina Santos dos Anjos (UFS/DELI)

Profa. Dra. Ana Azevedo (UFS/DED)

Profa. MSc Margarida Teles (UFS/DED

 

Aracaju, 22 de agosto de 2021

 

 

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