Godard foi antifascista desde o começo. E morreu assim

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Por Romero Venâncio*

Morreu Godard. Morre um cinema. Talvez a coisa mais importante a ser dita sobre Jean-Luc Godard: Ele era o Cinema. O maior amor de sua vida. Como sei disso? Está tudo em seus filmes.

Um cinema que citava o cinema. A vida de Godard se confunde com o cinema. Disse várias vezes que “o cinema morreu” e continuou fazendo filmes até o fim, como uma vela natural que se gasta até a lama final e se confunde com ela na última chama. Assim é uma paixão.

Tomado pela emoção de saber de sua morte neste setembro sem fim de Brasil em transe, arrisco, na superficialidade que me cabe, dizer que o cinema de Godard tem algumas fases. Sugiro três. Uma na Nouvelle Vague; outra no maoismo/marxismo e uma terceira mergulhado na “opacidade da linguagem” depois que a revolução não veio (ou de quando a revolução faltou ao encontro).

Godard foi a Nouvelle Vague. Não só. Mas foi. No singular. Foi a fase juvenil. Libertária (na forma & no conteúdo). Alegre. Travessa. Foi a liberdade de um cinema. Luz natural. Câmaras mais leves. As ruas de Paris. New York Herald Tribune! Como não lembrar? O que eu mais amava na nova onda francesa era o seu “Existencialismo”.

Consigo ver existencialismo em tudo deste cinema raro na história. Depois dos horrores da Segunda Guerra e sua carniça europeia, o existencialismo sartreano era a amarga e juvenil resposta (ou tentativa, como tudo na vida). Para quem amava o cinema e vinha do nada, o Godard da Nouvelle Vague era régua e compasso. E um tantinho mais. As mulheres dos filmes de Godard dessa época eram bonitas sem mais nada. Livres. Impetuosas. Isso incomodou a França católica e integrista. Godard foi antifascista desde o começo. E morreu assim hoje.

Godard foi um marxismo no cinema. Depois de 1967, vemos o nosso cineasta às voltas com o “maoísmo” (uma invenção quase francesa) que tinha pouco da China de Mao daqueles anos impetuosos. Mas era o maoísmo de Godard (satiricamente retratado no filme “O formidável”). Godard participou de “célula maoísta”, animou o maio de 68, fez filmes desabusados, difíceis e engajados num anti-capitalismo singular. Foi atrás dos Panteras negras e Rolling Stones.

Foi em busca da África, América Latina e Caribe (de Fidel Castro a Glauber Rocha). Errou grande porque foi grande nas suas escolhas. Coragem naquela quadra histórica não lhe faltava. Brigou muito. Tudo em nome de um socialismo. Mas a sua arma era a mesma da Nouvelle Vague: o cinema. Godard repudiou a sua fase Nouvelle Vague, mas jamais repudiou o cinema.

Depois de uma crise com este cinema radical e da frustração com a derrota dos “maios de 68” e um crescimento da direita, Godard se recolheu, pensa, estuda filosofia, faz televisão, faz “historia(s) do cinema”… E não larga o cinema. Passava dos quarenta e caminhava para os 60. E vem uma estranha e difícil fase em seu cinema. Chuto aqui uma caracterização.

Nos anos 90 e com a chegada de uma obra prima (quase impenetrável!!!) chamada de “Elogio do amor” (2001), o velho Godard entrava em sua fase “mais filosófica” (apesar de saber que Godard sempre foi o grande filósofo do cinema). O “Elogio do amor” é um projeto que pretende falar de amor acompanhando as vidas de três casais que se mistura à história do encontro do autor com uma jovem advogada que examina um pedido dos americanos que querem fazer um filme sobre a resistência francesa com os seus avós, em síntese pobre e pálida.

Mas nesta descrição está aquilo que chamo de última fase de Godard: “a opacidade da linguagem”. Quando temos muito a dizer e não sabemos como. Quando temos o profundo a subir à tona e nada acontece. Quando o tempo carrega a dor e pouco se sente. Quando Godard fez leituras das obras de Emmanuel Levinas.

Ele foi meu Mestre. Morreu Godard. Morre um cinema.

*O autor do texto é professor do Departamento de Filosofia da UFS e presidente da ADUFS. 

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