Quando a democracia encontra o autoritarismo: novos momentos do caos brasileiro

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Por Saulo H. S. Silva[1]

“O Brasil não é para principiantes”!  Esta frase é atribuída ao saudoso maestro Antônio Carlos Jobim e, obviamente, o seu tom de ironia revela toda a profundidade presente nessa sentença. De fato, o Brasil não é para principiantes, aqui ou é seguida a lógica e a moral dos poderosos ou estar-se-á fadado ao descaso, à perseguição, à morte violenta, à ameaça dos senhores das armas, à prisão arbitrária etc. O Brasil não é para principiantes porque viver aqui exige um ato de heroísmo, é preciso ser herói para viver em um dos países mais desiguais e violentos do mundo, onde a educação é tratada como faz de conta e os valores básicos que sustentam as democracias liberais, fruto das revoluções modernas, são compreendidos como mordomias excessivas.

Isso não é fruto do acaso, somos herdeiros da escravidão continuada e da ignorância venerada.  Afinal, aqui doutor é que tem posses, quem tem poder e, como consequência, prestígio político e desprezo pelos valores populares. Por isso, a famosa expressão, “sabe com quem está falando”? Aqui o povo nunca teve vez, mas foi condenado à vida de escravidão, ou de semiescravidão, de modo que nem as contraditórias liberdades liberais conseguiram um solo apropriado para criar raízes no Brasil.

Diante do histórico de violência e exploração contra os povos que formaram essa nação, a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, e dos consequentes governos do Partido dos Trabalhadores até o golpe parlamentar de 2016, foi uma maré de esperança para esse povo sofrido. E talvez tenhamos vividos os momentos mais esperançosos da história desse país, mas não nos cabe analisar esses fatos neste momento. Porque nem tudo são flores. Ao lado do espírito progressista, a mentalidade do retrocesso, seja por debilidade cognitiva de parcela da população ou intensão deliberada das elites em manter a posse dos seus feudos, permanece. E desde que seja adubada e cuidada, ela vigora! Como o Brasil não é para principiantes, os erros do PT, sobretudo, na escolha de seus aliados e no emprego de práticas políticas tradicionais, abriam a porteira para o desprezo dos valores democráticos e dos princípios constitucionais.

Enquanto partido que abraçou a ordem democrática brasileira instaurada com a Carta de Magna de 1988 e os anseios da formação de um país menos desigual, o PT acabou sendo a imagem do sucesso dessa democracia, da garantia de direitos às minorias, da esperança para o povo trabalhador, da universalização da educação e do emprego de políticas solidárias em geral. Com o aprofundamento das dificuldades no final do primeiro governo de Dilma Rousseff e o aumento sem precedentes da campanha ideológica antipetista, esse sentimento plantado pela elite conservadora trouxe consigo valores antidemocráticos e autoritários. O enfraquecimento carismático do PT corresponde à derrocada dessa espécie de orientação política. Assim, antipetismo e autoritarismo se comungam e ocupam praticamente a mesma posição no tabuleiro do debate político e ideológico. Por isso, tantos e tantas que erguem vozes contra o PT, e à esquerda em geral, também são advogados da intervenção militar contra os supostos desmandos dos defensores das liberdades e igualdades sociais.

Pois bem, após um período de acirramento da campanha ideológica empreendida para destituir a presidentes Dilma Rousseff, e consolidado o processo de impeachment, nós temos visto ocorrer no Brasil os maiores desprezos contra princípios fundamentais para qualquer sociedade dita moderna: democracia, liberdade, direitos políticos e atenuação da desigualdade social. O governo que se instalou no Palácio do Planalto tem um caráter deletério, tanto para os direitos populares bem como é entreguistas das riquezas brasileiras e entusiasta da ordem autoritária.

O contexto político que vivenciamos tem uma pauta, um roteiro delimitado e bastante evidente aos olhos de quem desejar enxergar alguma coisa em toda essa confusão. No estágio atual, as forças estão concentradas em cassar e anular o candidato com maior apoio popular e que, de um modo ou de outro, representa os valores da igualdade política, liberdade e inclusão social.  Haja vista figurar no topo das intensões de voto em todas as situações possíveis para a eleição presidencial de 2018 e por estar ligado a valores progressistas e populares, Lula é o cão a ser maltratado, o “bandido” a ser crucificado, é o político que deve ser retirado da vida pública.

Evidentemente, a prisão de Lula é autoritária e já estava orquestrada bem antes do julgamento do Supremo Tribunal Federal, no dia 04/04/2018.  Do contrário, não sairia um mandado de prisão tão rápido, cerca de 20 horas após o julgamento do STF, e sem ainda estarem encerrados os prazos para a contestação final da defesa. Independente da discussão sobre a prisão ou não em segunda instância e da ausência de provas para efetuar uma condenação dessa natureza, o que salta aos olhos são os detalhes e a ordem dos fatos.

Inicialmente, a caravana de Lula pelo sul do Brasil já havia sido atacada de forma covarde com a utilização de armas de fogo contra um dos ônibus da caravana, algo já constatado pela Polícia Federal. Nada mais protofascista e antidemocrático que recorrer à bala para resolver um contraponto político! Se não bastasse isso, um dia antes do julgamento, o Comandante do Exército brasileiro emitiu uma opinião pública de nítido caráter intimidatório, ameaçando, nas entrelinhas, o STF de um possível golpe militar em caso de resultado indesejado pelo senhor do alto escalão. É inimaginável que, em um regime democrático, o Supremo Tribunal Federal seja intimado antecipadamente pelos senhores das armas a proferir um determinado resultado.

No próprio julgamento do STF duas posições incongruentes foram tomadas por duas ministras daquela corte suprema. Inicialmente, o voto da ministra Rosa Weber teve um caráter de histórica contradição, ela simplesmente afirmou que a prisão em segunda instância era inconstitucional, mas que ela votaria pela prisão nessas condições para seguir o entendimento da maioria anteriormente estabelecido. Pergunta-se a Rosa Weber, como a ministra pôde deliberadamente sentenciar algo tão importante em contradição com os marcos constitucionais que a senhora mesmo acredita? E quanto ao voto de minerva dado pela ministra Cármen Lúcia? Bom, esse foi ainda mais indigno de uma magistrada que ocupa cargo de tamanha envergadura, a presidente do STF proferiu um voto mal formulado e incoerente com a própria decisão da ministra que votou outrora a favor da liberdade do Senador mineiro Aécio Neves, flagrado, diga-se de passagem, em todas as espécies de malfeitos. De qualquer forma, Cármen Lúcia desempatou e decidiu pelo caos, devidamente instalado com o célere mandado de prisão emitido pelo Juiz de Curitiba.

Como vemos, em todo caos existe uma lógica. Tudo isso não se trata de algo particular e nem de uma batalha imparcial contra a corrupção. O Brasil vem presenciando o aumento alarmante de casos protofascistas, assassinatos de líderes populares, justiça parcial e partidária, desprezo pela democracia e pelos direitos das minorias, intervenção militar no Rio de Janeiro e ameaça de golpe advinda do alto escalão do exército. O mandado de prisão de Lula, expedido dessa maneira e nessas circunstâncias, está inserido nesse processo de avanço do autoritarismo contra a liberdade, da força contra o direito. Nesse caso, é óbvio que tal processo deve ser contestado e denunciado porque corresponde à tentativa do espírito do atraso em continuar a apertar o cabresto da população brasileira em geral.  Afinal, com já afirmamos, o antipetismo traz consigo o autoritarismo, a exploração, a intolerância e o fim da política.

Portanto, em situações como essas, é preciso decidir em qual lado das intensões o cidadão permanecerá e qual é o país onde se deseja viver. O país do autoritarismo contra a liberdade? Dos interesses sombrios contra os preceitos legais? Dos burgueses gananciosos contra a classe trabalhadora? Não se pode escolher o meio termo, a radicalização se instalou de forma permanente, é uma queda de braços; eles ou todos nós?  Assim, encerro com uma celebre pergunta elaborada por Lenin em um dos seus livros, O que fazer? Evidentemente, um conflito de classes que chega a esse nível não será resolvido simplesmente por meio do voto e dos princípios da democracia representativa porque o autoritarismo só concebe o regime do medo, do terror, da exceção. Portanto, a pergunta aqui lançada ainda está sem respostas!

[1] Doutor em Filosofia, Professor da Universidade Federal de Sergipe.

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