Em 2019, a educação perdeu R$ 32,6 bi para o Teto de Gastos

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por Andressa Pellanda

Já faz quatro anos que a Emenda Constitucional 95, de 2016, foi aprovada. Nesse tempo, seus efeitos foram muito graves para as áreas sociais, especialmente as de saúde, educação, habitação, segurança alimentar e assistência social. Para a educação, área foco deste artigo, desde o começo das políticas de austeridade – em 2015, mas agravando-se a partir da EC 95 – já se contabiliza uma perda de R$ 99,5 bilhões (USD 20 bilhões), sendo R$ 32,6 bilhões só em 2019 (USD 7 bilhões), segundo cálculos da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

As consequências?

Muitas e profundas. A primeira delas, que é a origem e o produto de todas as demais, é a inviabilização da implementação do Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024. O PNE, disposto sob a Lei 13.005/2014, é a principal política educacional vigente hoje, sendo composta por 20 metas e centenas de estratégias, da educação infantil até o ensino superior, passando pelo combate ao analfabetismo; pela universalização do atendimento escolar; pela superação das desigualdades educacionais; pela formação, condições de trabalho e valorização dos profissionais da educação; etc. Tudo pautado por um modelo de educação de qualidade socialmente referenciada, com equidade, promoção das diversidades e gestão democrática. Lindo, né? Também acho. O problema é que o governo Federal não.

O Plano, construído a muitas mãos de professores, estudantes, pesquisadores, ativistas, gestores, conselheiros, e muitos outros especialistas em educação, é um verdadeiro pacto social, com a promessa de elevar o patamar de qualidade da educação pública brasileira para o dos países mais desenvolvidos em termos educacionais no mundo. Acontece que para deixar de ser promessa e para a Lei sair do papel, era necessário aumentar progressivamente o investimento em educação – especialmente o investimento por aluno, hoje de irrisórios R$ 303,50 por mês. 

Para isso, os mecanismos criados pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação e incorporados pela Lei do PNE em sua meta 20, de financiamento, do Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi) e do Custo Aluno-Qualidade (CAQ) deveriam já ter sido implementados em 2015 e 2017, respectivamente, e representariam um aumento para 7% do PIB até 2019 (aos 5 anos de vigência), e para 10% do PIB até 2024 (no final do Plano). Mas a EC 95 preconiza justamente o contrário disso ao congelar os investimentos para a área a partir de 2017 e o que vai acontecer, na verdade, é o seguinte:

Fonte: Rossi, Pedro, Oliveira, Ana Luíza Matos de, Arantes, Flávio, & Dweck, Esther. (2019). AUSTERIDADE FISCAL E O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO NO BRASIL. Educação & Sociedade, 40, e0223456. Epub December 09, 2019.

A EC 95 asfixia não só o PNE vigente hoje, como também o próximo, que deverá ter vigência entre 2025-2035, já que o Teto é de 20 anos, ou seja, até 2026.

Pressão contra a EC 95, desde antes de sua aprovação

Desde antes da aprovação da EC do Teto, em 2016, uma plataforma de organizações da sociedade civil tem se mobilizado para tentar barrar esse absurdo. Essas entidades se organizaram em torno da plataforma “Direitos Valem Mais, Não aos Cortes Sociais!”. Na área da educação, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, assim como as entidades membros de seu Comitê Diretivo, como Ação EducativaCEDECA-CECNTE e Fineduca, têm publicado uma série de documentos, notas técnicas, vídeos, entre outros materiais, para não só alertar os tomadores de decisão como também sensibilizar a sociedade para se unir em torno dessa agenda. Em 2016, a Campanha criou uma página especial sobre a então PEC 241, que está no ar e é possível encontrar um compilado dos alertas da época.

Nesse meio tempo, levamos aos organismos internacionais a denúncia e o pedido de apoio sobre a questão. Todos, sem exceção, se posicionaram veementemente contrários a tal política. 

Em 04/12/2020, a Campanha participou de audiência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), levando a questão. Os comissionados James Cavallaro, Francisco Eguiguren e Margarette Macaulay questionaram a delegação brasileira sobre o formato, a duração e a compatibilidade do projeto com as normas internacionais de direitos humanos, com afirmações como: 

seu impacto, plasmado assim, supõe um risco para a satisfação dos direitos e das necessidades sociais de uma população que não podem ser detidos por uma lei” (Eguiguren); 

o princípio básico dos direitos econômicos, sociais e culturais é o de não retrocesso e de alocação progressiva de recursos” (Cavallaro); 

como pode um Estado congelar o gasto com educação, saúde e serviços sociais uma vez que, todos os anos, a demanda aumenta?” (Macaulay). 

A crítica dos comissionados ficou plasmada no comunicado de imprensa final do período de audiências. 

Quatro dias depois, em 08/12/2020, foi a vez das relatorias da ONU para o direito à educação, para saúde, e sobre extrema pobreza se pronunciarem, expressando “séria preocupação com o potencial impacto da PEC 55/2016 na realização dos direitos econômicos e sociais no Brasil”, que “provavelmente impactará desproporcionalmente os estratos mais pobres e vulneráveis da população brasileira”. Além desse comunicado ao Estado Brasileiro, ainda foi publicado um release bastante forte à época, sob o título “Teto de 20 anos para o gasto público violará direitos humanos”.

Após a aprovação da Emenda, decisão que ignorou as recomendações nacionais e internacionais, ainda foram publicadas comunicações das relatorias da ONU de pobreza extrema e educação, em 2017 – que sequer teve as mesmas respostas evasivas por parte do governo -, e das relatorias de educação, alimentação, dívida externa, moradia, pobreza extrema, água e mulheres, em 2018.

Covid-19: diante da pandemia, voltamos ao STF

No final de março de 2020, já em um momento de pandemia, as organizações da educação e da proteção se uniram com organizações das demais áreas sociais que também são Amicus Curiae e entramos com uma petição no Supremo Tribunal Federal (STF) nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade pela suspensão da EC 95, do Teto de Gastos. Essa petição tem caráter emergencial pois a pandemia de Covid-19 coloca em risco o funcionamento do SUS (Sistema Único de Saúde) e, devido à suspensão das aulas nas redes de ensino público e a impossibilidade de oferecer merendas, expõe milhares de crianças e adolescentes à vulnerabilidade, à miséria e à fome.

Apresentamos na petição, em termos das ameaças para a educação, que hoje não dedicamos sequer recursos adequados para atender o número atual de matrículas da educação básica. Nos últimos anos, houve um corte considerável de recursos ao FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), vinculado ao Ministério da Educação, e responsável por políticas e programas como a alimentação escolar, o transporte escolar, o Pró Infância (destinado à construção e reforma de creches) e a compra de materiais didáticos, subfinanciamento agravado pela Emenda Constitucional 95.

O desmonte da educação dos últimos anos só se agrava nesse momento de pandemia, dando um golpe forte nos equipamentos públicos mais capilares e cotidianos para a quase totalidade da população brasileira, as escolas.  Isso afeta crianças, adolescentes, jovens e adultos por não termos dedicados recursos adequados para alimentação escolar – tão necessária nesse momento em que as famílias mais pobres estão sofrendo ainda mais com a crise e passam fome -, para gestão adequada da educação nesse momento que exige respostas rápidas, e muito menos para implementação de atividades educacionais complementares a distância, em que nem profissionais da educação têm formação adequada nem sustentabilidade psicológica e material para garantir presença virtual de qualidade para suas e seus alunas e alunos, nem há estrutura para acesso aos conteúdos virtuais. 

Ainda, com o fechamento das escolas por conta da pandemia, muitas mães e pais que continuam convocados ao trabalho não têm onde deixar suas crianças para trabalhar, intensificando a sobrecarga e vulnerabilidade das famílias. Trouxemos todas essas questões em nossos Guias de Educação e Proteção em tempos de COVID-19, que abordam todos os desafios que enfrentamos na área nesse momento. Manter o subfinanciamento da educação é também empurrar as crianças e os adolescentes brasileiros, destinatários de proteção integral e prioridade absoluta em termos constitucionais, para a miséria e a fome.

No ensino superior, o subfinanciamento, o corte de bolsas, e o esvaziamento dos investimentos em pesquisa impactam diretamente todas as áreas. Isso ocorre já que dele depende também o desenvolvimento de pesquisas que tragam mais informações sobre a doença do COVID-19, elaboração e produção de testes, sintomas, tratamentos e a própria cura e solução para a pandemia e o momento crítico que vivemos. Assim, investir amplamente em educação hoje é crucial para pouparmos vidas

Precisamos urgentemente:

  • permitir o aumento de gastos públicos para contenção da pandemia e de suas consequências socioeconômicas no Brasil, com a devida alteração da meta de resultado primário;
  • da retomada das condições de financiamento do Plano Nacional de Educação (PNE) – já que suas estratégias contribuem significativamente para o enfrentamento desse momento que vivemos;
  • de garantia de bolsa de alimentação escolar emergencial para as/os estudantes das escolas públicas do país;
  • da retomada das bolsas de pesquisa e dos investimentos no ensino superior público.

Para isso acontecer, é mandatória a revogação imediata da Emenda Constitucional 95, cessando seus efeitos sobre o conjunto das políticas sociais. Isso é urgente e, a cada dia que passa sem essa medida, são milhares de pessoas, entre elas crianças e adolescentes, que passam fome, são ainda mais marginalizadas e perdem suas vidas. Podemos evitar milhares de mortes, enterros, lutos e impactos psicológicos de muitos anos às famílias que perdem seus entes queridos. 

Isso se concretiza a partir do que sempre deveria ter sido feito, mas que se torna mais evidente nesse momento de pandemia: a população deve ser a prioridade e não o acúmulo da riqueza nas mãos de poucos. A economia precisa garantir sobrevivência e vida digna à sua população e não o contrário. É a população que produz e move a economia e a ela deve ser investido o fruto desse trabalho, a ela deve se garantir os direitos previstos nos artigos 5 e 6 da Constituição Federal: 

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…)

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Direitos valem mais. Vidas valem mais. Passou da hora de fazer isso valer. 

 

Andressa Pellanda é mestranda em Ciências (IRI/USP) e coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

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