Um novo “jeitinho” para justificar o ensino a distância?

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Por Eblin Farage*

A educação superior pública sempre passou por desafios, desde seu nascedouro com uma perspectiva de educação elitizada e voltada basicamente ao ensino, até alçar outros patamares, passando pela constituição de um sistema educacional complexo, amplo (embora ainda insuficiente para ser universal) e que pouco a pouco foi se legitimando a partir do tripé ensino-pesquisa-extensão. Essa trajetória, cheia de avanços e retrocessos, passou pela luta no âmbito do funcionalismo público da constituição do PUCRCE (Plano Único de Classificação de Cargos e Empregos, Lei 7596/1987 regulamentada pelo Decreto 94.664/1987) como forma de garantir uma estrutura de carreira aos servidores públicos, o que contribuiu para a estruturação das universidades públicas federais e serviu de parâmetro para a constituição das carreiras nos estados.

Essa trajetória de altos e baixos da educação pública brasileira foi margeada e pautada pelos interesses do capital, expressos, em especial, pelos organismos internacionais como Banco Mundial, FMI, Organização Mundial do Comércio (OMC), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), entre outros. Organismos que, como afirma Kátia Lima, “são sujeitos políticos coletivos do capital” e que ao longo dos últimos trinta anos elaboraram mais de quinze documentos para ditar como deveria ser a educação superior na América Latina.

Com maior ou menor intensidade, todos os governos de plantão no Planalto Central cumpriram os princípios orientadores dos organismos internacionais para a educação no Brasil. Uns com foco na privatização clássica, outros apostando na disseminação de baixa qualidade do ensino superior através do ensino a distância e a certificação em larga escala, outros conjugando um pouco de tudo que está nas diretrizes de uma educação terciária, como afirma o Banco Mundial, e de uma educação que é um “serviço”, como afirma a OMC. Assim, pouco a pouco, o projeto de educação superior do capital foi ganhando espaço nas universidades brasileiras. Uma formação minimalista que teve como foco a redução dos currículos de graduação, o aligeiramento da formação na pós-graduação, as parcerias público-privadas para o desenvolvimento de pesquisas e de determinadas modalidades de extensão, a expansão desenfreada do ensino a distância, a mercantilização da educação por meio de cursos pagos em instituições públicas de ensino e a subvenção pública para as instituições privadas de ensino, entre muitos outros elementos. 

As consequências desse modelo de educação terciária e mercantilizada para o tripé ensino-pesquisa-extensão e a autonomia universitária, conquistados na Constituição Federal de 1988, foram devastadores, de modo a substituí-los por arremedos. Os recursos, que se ampliaram consideravelmente em alguns períodos, foram direcionados para instituições públicas já desestruturadas por dentro, em que a terceirização, a parceria público-privada (PPP) e as fundações de direito privado deram o tom e constituíram um modus operandi baseado na desigualdade dentro e entre as instituições de ensino. De um lado cursos e universidades “merecedoras” de maiores investimentos, de mais recursos, em especial a partir das PPP, e de outro lado cursos e instituições mais voltados para a certificação em larga escala, com poucos recursos, reduzindo e limitando o tripé no que se refere à pesquisa e extensão. 

Aliada à reestruturação interna das instituições de ensino, vivemos, desde a década de 1990 um conjunto de contrarreformas que desestruturaram os serviços e as carreiras dos servidores públicos, nos quais se encontram os docentes e técnicos administrativos. Passamos por inúmeras reformas da Previdência, que foram retirando direitos dos trabalhadores; pela aprovação da terceirização das atividades-meio e recentemente das atividades-fim; pela desestruturação da carreira docente das universidades federais, que transformou uma estrutura (ainda que hierarquizada e inadequada para o projeto de universidade que defendemos), em uma tabela salarial; por diferentes formas de privatização, clássicas e não clássicas; e vivenciamos, ao mesmo tempo, a popularização das instituições públicas de ensino, em especial com a criação dos institutos federais e com as cotas raciais e sociais. 

Essa realidade, contraditória, que se expandiu de forma veloz pelo país foi gerando um conjunto de adaptações por parte dos profissionais da educação. Um misto de compromisso, “vocação”, “missão” e realização foi tornando uma parte dos professores e professoras das instituições de ensino hábeis em contornar as dificuldades. Se não temos equipamentos para uma aula mais tecnológica, aproveitamos nosso décimo terceiro para comprar equipamentos que podemos usar em nossas aulas; se não temos transporte da instituição de ensino para realizar projetos de extensão, utilizamos nosso próprio carro; se não temos bolsas de pesquisa e extensão para os estudantes, aderimos à pesquisa e extensão voluntária, afinal, “isso é muito importante para a formação dos discentes”; se não podemos usufruir ao direito das licenças capacitação e qualificação, porque isso reverberará em sobrecarga aos colegas do departamento, fazemos mestrado e doutorado trabalhando; se não temos recursos para pesquisas, buscamos parcerias; se não temos recursos institucionais para execução de eventos (seminários, cursos, congressos), cobramos uma “taxinha” (mas só para quem puder!); se não somos preparados para ministrar aulas para estudantes com deficiência, buscamos com os próprios formas de contribuir no seu processo de ensino-aprendizagem; se os técnicos administrativos vão sendo reduzidos, passamos a incorporar suas funções; se os trabalhadores de limpeza são reduzidos, passamos a limpar nossas salas, afinal, é só passar um paninho; se a segurança dos campi é reduzida, passamos a terminar nossas aulas mais cedo, para não nos expormos muito à violência das cidades. E, assim, vamos seguindo a vida, nos adaptando a tudo que não deveríamos. Como diz Marina Colasanti, “eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia”.

Agora, somos desafiados a mais uma adaptação. Talvez aquela que representa a maior e mais profunda desestruturação do ensino público de qualidade, o ensino a distância, ou melhor, um arremedo de EaD. Sim, um arremedo, já que o EaD, que é uma modalidade de ensino, regulamentada pelo Decreto nº 9.057, de 25 de maio de 2017, considera a “educação à distância a modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorra com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com pessoal qualificado, com políticas de acesso, com acompanhamento e avaliação compatíveis, entre outros, e desenvolva atividades educativas por estudantes e profissionais da educação que estejam em lugares e tempos diversos”.

Segundo o decreto que normatiza o EaD, essa modalidade se aplica para “estudantes e profissionais da educação que estejam em lugares e tempos diversos”. Sim, estamos em lugares e tempos diversos! Uma parte de nossos estudantes está nas periferias desse imenso país, nas comunidades indígenas e ribeirinhas, nas áreas rurais e, por isso, não dispõe de acesso a tecnologias da informação. Uma parte de nosso corpo docente, assim como de nossos estudantes, está preocupada em salvar suas vidas e a de seus familiares, pois sofre de comorbidades, cuida de pessoas com deficiência e idosos, tem crianças em idade escolar em casa. Sim, estamos em lugares e tempos diversos da maior parte dos governantes desse país, em especial do Executivo de ações fascistas, miliciano e fundamentalista, que diz “E daí?” para as milhares de mortes, afinal “não sou coveiro”. 

Tanto o Executivo, como grande parte do Congresso Nacional, estão preocupados em salvar a economia e os empresários, mesmo que momentaneamente pareçam ter discursos distintos. Sim, são farinha do mesmo saco, por isso garantem R$ 1 trilhão para os banqueiros e apenas R$ 600 para a população pobre. Sim, defendemos projetos de classe distintos!, antagônicos! incompatíveis!, inconciliáveis! E as divergências existentes não vão se resolver nas eleições de 2022 se não construirmos um projeto societário que, de fato, interesse à classe trabalhadora.

Por isso, é tão fundamental defendermos as instituições públicas de ensino e a educação de qualidade e presencial. O “jeitinho” que podemos dar agora, justificado pelo fato de que não sabemos quando vamos voltar às aulas presenciais; de que não teremos mais a mesma normalidade de antes (ainda bem, assim temos esperança que algo mude para melhor!); de que a pandemia não se encerrará antes de dois anos; e de que temos que reorganizar a vida e as instituições a partir dessa nova realidade, pode nos impulsionar a uma adaptação prematura e sem qualificação a uma nova modalidade de ensino como forma hegemônica. E assim, nosso “jeitinho” será absorvido pelos empresários da educação, pelo governo anticiência, pelos gestores autoritários e contribuirá para a destituição do sentido pleno da educação.

A educação, em seu sentido pleno, é por nós compreendida como uma educação dialógica, que contribui para a emancipação humana. Assim, deve ser uma educação para todo(a)s. TODO(A)S significa a integralidade absoluta de estudantes, tanto aquele(a)s que dispõe de todos os recursos quanto o(a)s estudantes que moram nas periferias, em comunidades indígenas e ribeirinhas, nas áreas rurais, o(a)s estudantes com deficiência. Por isso qualquer “jeitinho” nosso, para adaptação a ensino remoto, nesse momento, pode significar um golpe fatal na educação pública, gratuita, laica, de qualidade, socialmente referenciada, antissexista, antipatriarcal, anticapacitista, antilgbtfóbica que defendemos. 

Segundo os dados, o Brasil tem mais de 12 milhões de desempregados e está entre os dez países mais desiguais do mundo, com uma das internet mais caras (Cuponation, 2019). Segundo a pesquisa TIC Domicílios de 2018, o país tem cerca de 4,5 milhões de brasileiros sem acesso à internet banda larga, a maior parte das famílias pobres quando acessam a internet o fazem do celular e mais de 50% dos domicílios da área rural não possui acesso à internet. Além disso, 38% das casas não possuem acesso à internet; 58% não têm computador e 59% das pessoas das chamadas classes D e E não navegam na internet. Ou seja, o arremedo de ensino a distância é uma forma de buscar uma nova elitização do ensino superior, excluindo, novamente, os segmentos mais pauperizados das instituições públicas de ensino. 

E na sua casa de classe média, quantos computadores tem? Se todos de casa tiverem que acessar a internet ao mesmo tempo a rede é sustentável? Você assiste a vídeos, lives e vê filmes sem interrupções? Ops, mas você, professor e professora universitário, é de classe média! Compõe as chamadas classes A e B! Sabia? Se você não acessa com qualidade as tecnologias da informação, imagine os mais pauperizados! E você, professor e professora, está preparado para dar aulas online? Sem interação, de sua casa, sem ver o rosto e as expressões dos estudantes? A educação, sem debates, sínteses e reflexões coletivas, é plena? Está preparado para ter suas aulas tornadas públicas e sobre o risco de qualquer tipo de manipulação dos movimentos de extrema direita? 

São muitas as perguntas para esse momento de excepcionalidade. Por que temos tanta pressa? O que nos incomoda? Estar em casa, em isolamento social realizando trabalho remoto (pois trabalho remoto é diferente de EaD!), cuidando da família e dos afazeres da casa? Por quê? Não podemos dedicar nosso tempo a pesquisas, estudos e ações de solidariedade para salvar vidas? Por que temos que nos aligeirar em garantir ensino remoto? Mas se ficarmos um ano em isolamento social? O que faremos? 

Se o isolamento social perdurar por muitos meses, o que a conjuntura parece não indicar, aí teremos tempo de preparar uma verdadeira adaptação a educação a distância. Sim, aí será educação e não ensino, já que exigirá preparação dos professores, garantia de acesso à tecnologia da informação para professores e estudantes e adequação de acesso a material didático, entre tantas outras demandas. Em alguns países da Europa, para garantir o acesso à internet, o governo colocou ônibus roteadores nos bairros mais pobres. Sim, teremos que pensar alternativas, mas todas necessariamente terão que ser pensadas e planejadas coletivamente com a comunidade acadêmica, sem imposição de gestores, sem imposição da necropolítica do Executivo federal, sem o fascismo elitista das classes altas.

Mas tudo indica que apesar de não retornarmos à nossa antiga normalidade – ainda bem! –, teremos, em breve, algum tipo de retorno, seja parcial ou totalmente presencial ou seja híbrido (articulando ensino presencial e remoto). O fato é que temos que nos preparar para esse momento, isso parece ser mais importante agora do que iniciar ensino remoto e/ou ensino a distância. É hora de pensarmos como ficaremos com nossas salas de aula de cinquenta ou mais alunos. A estrutura de nossas instalações para ensino-pesquisa-extensão, os restaurantes universitários, o desenvolvimento de plataformas públicas de acesso à internet, os laboratórios, as bibliotecas e todo o conjunto que faz uma instituição ser uma universidade, instituto federal ou Cefet. Então, talvez o momento seja de pensar e planejar o futuro de médio e longo prazo, pois isso exigirá investimento público ou cairemos na rede do “mercado” de venda da educação e das parcerias público-privadas (PPP).

Para pensarmos esse futuro não tão distante, nos parece essencial considerarmos princípios e pressupostos. Alguns dos princípios que devem ser por nós reafirmados passam:

– Por partimos das análises construídas ao longo das últimas três décadas considerando o projeto do capital para a Educação e a EaD como uma estratégia para a aplicação da chamada educação terciária, assim como todas as transformações impostas no mundo do trabalho pela reestruturação produtiva;

– Pela defesa da educação pública, gratuita, de qualidade, socialmente referenciada, laica, universal, antipatriarcal, antissexista, anticapacitista e antirracista;

– Pela defesa do ensino presencial como forma hegemônica de modalidade de ensino que possa garantir, entre outros, a interação social real;

– Pela rejeição a qualquer forma de ações excludentes de discentes à educação;

– Pela defesa do tripé ensino-pesquisa-extensão;

– Pela prioridade de defender a vida.

 

Além desses princípios é necessário considerar alguns pressupostos para nossas análises e ações imediatas, que consideram que:

– Vivemos em um momento de excepcionalidade, e por isso não é possível a transposição da antiga “normalidade” para esse momento;

– Não sabemos quando poderemos retornar às atividades presenciais na educação pública;

– O trabalho docente não é apenas ensino, então é necessário diferenciarmos, no caso dos professores, EaD, ensino remoto e trabalho remoto;

– É necessário nos prepararmos para aquilo que estão denominando “nova normalidade”, enquanto não tivermos vacina para a Covid-19;

– Toda e qualquer ação nas instituições de ensino superior (federais, estaduais, municipais, institutos federais e Cefet), não deve ser imposta sem antes realizar um diagnóstico das condições materiais, sociais, emocionais, de professores e estudantes;

– Os diagnósticos não devem ser induzidos/ manipulados;

– Não podemos aceitar nenhuma ação que permita o aprofundamento da desigualdade. Por exemplo, se as ações de ensino realizadas de forma remota permitirem a integralização dos currículos, estaremos aprofundando as desigualdades internas entre os estudantes que acessaram e os que não acessaram, uma vez que uns vão se formar e outros não;

– Os ataques ao funcionalismo público e a educação são um dos eixos centrais desse governo, seja pela pauta neoliberal expressa por Paulo Guedes seja pela pauta olavista expressa por Weintraub e outros.

Por ora, temos que cuidar da vida, ficar em casa! Lutar para não termos imposição de regras de controle excessivo nas instituições de ensino, para que tenhamos condições para o trabalho remoto, sem imposições, respeitando as condições de cada professor e professora.

Podemos dar mais que apenas um “jeitinho” no caos. Podemos reconstruir nossa sociabilidade em outros patamares, reconstruir as experiências educacionais para além de nossas mesmices, para além de nossos vícios. Como diz Colasanti na obra citada anteriormente (p.9), “a gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma”. Quem sabe estamos tendo uma boa oportunidade de não nos perdermos, de desconstruir a humanidade desumanizada e construir uma sociabilidade humanizada!

 

Eblin Farage é assistente social, mestre e doutora em Serviço Social, é professora da Escola de Serviço Social da UFF e secretária geral do Andes-SN.

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