Os desafios para as Mulheres Negras na docência na universidade pública

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Maria Batista Lima (Lia)*

Dados estatísticos, bem como pesquisas acadêmicas (IBGE, IPEA, OXFAM), evidenciam como o gênero tem sido ao longo da história fator de desigualdades, assim como o pertencimento étnico-racial. Gênero e raça se interseccionam na hierarquização das condições materiais e imateriais de mulheres (negras e brancas) e homens (negros e brancos).

Conforme dados das fontes referidas, gênero e raça são fatores determinantes das desigualdades brasileiras, considerando-se que continuamos, como mulheres negras, compondo a base da pirâmide social, apesar dos avanços sociais conquistados a partir das últimas décadas do século 20 e nas primeiras décadas do século 21.

Um dos fatores preponderantes dessas conquistas se deu com a ampliação contínua dos Movimentos de Mulheres Negras no Brasil, especialmente a partir da década de 1970 com o fortalecimento do processo  organizativo das mulheres negras e da luta pela visibilidade das especificidades da pauta da mulher negra nas organizações  do Movimento Negro, forjando “as bases estruturais para a formação das organizações de mulheres negras contemporâneas, que teve como uma de suas primeiras expressões a organização da Reunião de Mulheres Negras Aqualtune (Remunea), na cidade do Rio de Janeiro, em 1978” (SANTOS, 2009).

Apesar  dos avanços, continuamos, como mulheres negras, a ser os principais alvos das múltiplas discriminações. Entre estas as discriminações, constituímos a maioria entre as vítimas de feminicídio, as que têm menos acesso a todos os serviços públicos e as que predominantemente só têm acesso a postos de trabalho mais precarizados. 

Apesar de formar a maioria da população feminina do país e da ampliação no acesso à educação e apesar da mulher já constituir-se como maioria na educação, como mulheres negras ainda estamos longe da equidade, considerando-se que as estratégias da opressão de gênero e étnico-racial impõem condições práticas e simbólicas de exclusão que dificultam o justo acesso e progressão no campo educacional, principalmente quando se trata de áreas e funções específicas, seja no âmbito social macro ou nos espaços educacionais, de modo especial nas instituições de Ensino Superior.

Dados do IBGE apontam que, apesar dos avanços educacionais deste século 21, com as ações afirmativas, e embora se constitua como maioria da população brasileira, a população negra ainda é minoritária no Ensino Superior, seja  como estudante ou como docente. Segundo Gonçalves apud Carvalho (2018), em 2006, reunindo as/os docentes das principais IES brasileiras contabilizavam-se 99,6% de docentes brancos/brancas e 4% de docentes negros/negras.

Segundo a mesma autora, dados de 2016 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) apontavam que, apesar do avanço com a expansão universitária, pouca alteração havia ocorrido neste quadro. O referido estudo aponta que nas IES públicas e privadas do Brasil, “de um total de 383.683 docentes, apenas 1,34% declararam-se negras ou negros”. Na pós-graduação, o Censo destaca que as mulheres negras não chegam a 3% do corpo docente no país.

Entre os fatores dessa realidade, são apontadas a desigualdade ainda predominante na representatividade da mulher negra estudante na  graduação e como docente nas IES, apesar da conquista das cotas étnico-raciais para estudantes na graduação e na pós-graduação e, mais recentemente, para concurso público para docência nas IES. 

Desse modo, a persistência da relação interseccional do racismo estrutural e do machismo nos espaços universitários ainda é um grande entrave para a efetivação da equidade étnico-racial, de gênero e social na sociedade, penalizando principalmente mulheres negras nesse contexto.

Entendo, portanto, que entre os desafios enfrentados por nós, mulheres negras docentes nas IES, além da já referida sub-representatividade nesse espaço, evidencia-se o sentimento de solidão, inclusive em diálogos que possibilitem o combate ao racismo nesses ambientes e a ampliação de referenciais para as estudantes ingressantes nas IES.

A mencionada sub-representividade do ser negra, bem como a minimização das temáticas relativas ao racismo e ao machismo, atingem principalmente mulheres negras, conceitos e práticas advindas dos persistentes efeitos da colonialidade do ser, do poder, do saber e da violência epistêmica (QUIJANO, GNECCO, 2009) que alavancam relações assimétricas de subalternização e hierarquização do conhecimento, da visão de mundo, dos diferentes repertórios socioculturais e identitários dos diferentes grupos sociais nas dimensões institucional e intersubjetiva.

Um exemplo dessa relação são as resistências persistentes no espaço universitário em relação a efetivação da Educação das Relações Étnico-raciais (ERER) nos cursos de graduação, conquista legal obrigatória estabelecida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/1996), Leis 10.639/2003 e 11.645/2011, Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais (DCN-ERER) e seu plano de implementação, bem como as Diretrizes Curriculares Nacionais para formação inicial e continuada de professores e professoras.

A negação da legitimidade e necessidade de tratarmos da questão do racismo como uma responsabilidade de todas/todos as/os profissionais dos diversos centros, departamentos e cursos, na perspectiva institucional e cotidiana, é um dos fatores que incidem em termos, como negras, uma responsabilidade que se dá de forma solitária, a partir da compreensão de que o combate ao racismo passa pela efetivação das conquistas referentes ao conhecimento, reconhecimento, valorização, respeito e a necessária representatividade dos povos e grupos explorados pelo colonialismo e pela colonialidade.

A pesquisadora Joselina da Silva, que tem desenvolvido pesquisas sobre mulheres negras nas IES, frisa que as participantes de suas pesquisas, bem como suas orientandas e orientandos, indicam um “ciclo do racismo institucional” que impede a ascensão das docentes negras. Ela enfatiza que, especialmente para as mulheres negras da comunidade acadêmica da área de ciências humanas, o racismo institucional se apresenta sob a forma de falta de reconhecimento institucional sobre a validade científica de temas como gênero e raça.

Esse é o fato vivenciado por muitas docentes negras, que têm o status científico de sua produção questionado, em um conceito racista de rigor científico, desconsiderando-se as múltiplas dimensões que justificam um objeto de estudos.

Não obstante os desafios ainda presentes na trajetória das Mulheres Negras neste país, fruto dos  do racismo, machismo e sexismo atrelados à colonialidade que os retroalimentam, é fundamental apontarmos os avanços conquistados nessa trajetória, bem como evidenciar a centralidade dos movimentos de mulheres negras nessa luta histórica.

Ainda que tenhamos muito mais a trilhar nesta caminhada na qual o acesso equânime e democrático a todos os bens sociais, dos quais  a educação, o trabalho, as condições de vida, o reconhecimento e valorização identitárias são partes fundamentais, consideramos o fato de que “nossos passos vêm de longe” e se os passos até aqui trilhados a partir da luta ancestral  nos possibilitou ampliarmos a circularidade de forças e compromisso com essa luta...que outras Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Luiza Mahin, Dandaras e tantas outras guerreiras continuem ampliando essa luta, ampliando a possibilidade de sermos o que quisermos ser, com equidade de direito de exercer, esse SER pessoal e profissional, inclusive na Ciência, na Universidade e na VIDA! Que o aquilombamento seja a energia vital nessa trajetória, cada vez mais ampliada, cada vez mais democratizada!

*Maria Batista Lima (Lia) é professora da Universidade  Federal de Sergipe, no Departamento de Educação do Campus Itabaiana (DEDI) e no Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PPGECIMA).

 

 

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