Paulo Freire se fez sabiamente humano

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Por Eliana Romão*

Esta homenagem nasceu da celebração do aniversário de 100 anos de Paulo Freire – 19 de setembro, promovida por vários cantos do Brasil e do mundo, entre os quais na Universidade Federal de Sergipe, no Departamento de Educação (DED), sob a chefia da Profa. Margarida Teles. Uma tarde de palavras de gratidão, cantos, cartas, contos, risos e poesias. E cada professor/a, ali presente ou ausente, teria uma história para contar.

Paulo Freire no tear de minha vida de professora.

Como professora, seja de alfabetização (quando desistimos da cartilha adotada) seja no ensino superior, recorri a Paulo Freire nas buscas que fazia para compreender e me acertar no meu ofício. Fizemos nossa própria cartilha, com palavras geradoras e depois, na falta de livros infantis, nossas histórias problematizadoras. Da educação infantil ao curso superior, pós-graduação, Paulo freire esteve sempre presente na minha vida, como na vida de muitos/as professores/as. Certo dia um aluno indagou: a senhora sonha com Paulo Freire? Respondi, não, eu sonho com o seu sonho. E seu/nosso grande sonho é a “utopia da libertação”.

“Sonho é coisa de quem existe – existir é mais que viver -, e sonhar é uma necessidade da existência humana. (...) Sonho com uma sociedade menos feia. Uma sociedade em que seja possível amar e ser amado. Uma sociedade ética, estética, livre e decente (...) O meu amanhã é o hoje que eu transformo (....) A grande maioria da população Brasil está proibida de sonhar. (2004). 

E até de viver estamos sendo proibidos. A partir da advertência de uma depoente notável da CPI da pandemia. frente ao número de mortes por Covid, se a gente ficasse 1 minuto de silêncio, ficaríamos mais de 365 dias silenciados.

Paulo Freire, no tear de minha formação acadêmica.

Na UNICAMP e congressos de formação de professores que participava em São Paulo, não perdia a ocasião de me ajuntar a muitas professoras que, como eu, “tietavam” Paulo Freire. Ficava arrodeado de professoras e nunca presenciei alguma pressa em se afastar. Uma das vezes perguntei: Paulo Freire, sua mulher não fica com ciúmes arrodeado de tantas mulheres? Ele sorriu e respondeu, “não, porque são muitas, se fosse uma só, ficaria.”

Muito querido e aplaudido por onde chegava. Nunca perdia o humor, nem tampouco desdenhava de perguntas, mesmo as mais bestiais. Bem sabia que nenhuma “ordem” opressora suportaria que os oprimidos todos passassem a dizer: “Por quê?”.

Educador da pedagogia do diálogo porque sabia que “não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão”. Educador que se fez sabiamente humano e do amor. Amar as pessoas se destaca nas suas andanças pelo mundo. “Vá até as pessoas. Aprenda com elas. Viva com elas. Ame-as. Comece com aquilo que elas sabem. Construa com aquilo que elas têm”. (604 a.C Lao Tzu). Precisou tanto tempo para que, com Paulo Freire, esse apelo projetasse sua luz. Nisso consiste o miolo de seu legado.

Paulo Freire, Educador amoroso.

Autor de um legado que repercutiu na vida de educadores pelo mundo afora, até com o que escreveu sem intenção de divulgar e, muito menos ensinar, teve repercussão. Quando tentava construir minha tese, no doutorado, soube, numa conferência de Eustáquio Romão, na UNICAMP, da descoberta de duas placas de amor a Elza, por ocasião de seu sepultamento. Foi recorrendo ao que escreveu para o túmulo de Elza que me ajudou na busca de repostas que na época fazia para formulação da tese acima referida.

Quando ficou viúvo, demostrou seu desassossego no registro de uma placa lá encontrada que dizia: “Quem me dera que eu pudesse passar de um tempo para o outro com a pressa e a maciez com que as nuvens passam no lindo azul do céu” (Paulo, 22.11.86).

Cinco anos mais tarde, o ex-viúvo retorna ao cemitério com outra placa, ainda abalado e sem matar as lembranças do amor passado, dizendo: “Elza, corte profundo, dor intensa, noites sem manhã, dias sem sentido, tempo coisificado, imobilizado. Desespero, angústia, solidão. Foi preciso aceitar a tua ausência para que ela virasse presença na saudade amena que tenho de ti, por isso, voltei à vida sem te negar”. (Paulo, 24.10.91).

Educador ético, decente, de palavra. No sentido mais genuíno do termo – “corporeificação do exemplo”. Dizia, nNão é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra (...)”. Se faz(ia) presente. E ao se fazer presente, encanta(va). Paulo Freire é aquele que – “se dá a luz”, “se dá a ver”.

Sua andarilhagem pelo mundo se fez na necessidade - expressar-se e expressar o mundo. Por isso o mundo inteiro sabe que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”. E aprender a ler a palavra e dizê-la ajuda a entender o mundo. Artesão da palavra porque sabia ser artesão da escuta.

“Um Escutar que vai além da capacidade auditiva de cada um”. (Freire). Ensinava que escutar é estar disposto a abertura a fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro. É escutando que aprendemos a falar com eles. Lutou toda sua vida “para não contradizer seu sentir do seu dizer, seu dizer do seu fazer”. Não tinha pudor de expor suas fragilidades. E, ao tratá-las, “seguia construindo as suas qualidades” que não foram poucas. Se fez sabiamente humano e conquistou o mundo.

Findo esta declaração de gratidão, lembrando que por onde passou foi homenageado – por brasileiros, por chilenos, norte-americanos, franceses, africanos. Mas vou caminhando para o final, trazendo uma homenagem feita por um brasileiro, Thiago de Melo, seu amigo no Chile – também exilado – que fez um canto de amor para Paulo Freire, em sua homenagem, publicado/1965:  

Canção para os fonemas da alegria.

Peço licença para algumas coisas.

Primeiramente para desfraldar.

Este canto de amor publicamente.

 

Sucede que só seu dizer amor

Quando reparto o ramo azul de estrelas

Que em meu peito floresce de menino.

 

Peço licença para soletrar,

No alfabeto do sol pernambucano

A palavra ti-jo-lo, por exemplo.

 

E poder ver que dentro dela vivem

Paredes, aconchegos e janelas,

E descobrir que todos os fonemas

São mágicos sinais que vão se abrindo

Constelação de girassóis gerando em círculos de amor

Que de repente estalam como flor no chão da casa.

 

As vezes nem há casa: é só chão.

Mas sobre o chão, quem reina agora é um homem diferente,

Que acaba de nascer.

Porque unindo pedaços de palavras

Aos poucos vai unindo argila e orvalho,

Tristeza e pão, cambão e beija-flor,

 

E acaba por unir a própria vida

No seu peito partida e repartida

Quando afinal descobre num clarão

Que o mundo é seu também, que o seu trabalho

Não é a pena paga por ser homem,

Mas o modo de amar – e de ajudar o mundo a ser melhor.

 

Peço licença para avisar que, ao gosto de Jesus,

Este homem renascido é um homem novo:

Ele atravessa os campos espalhando a boa-nova,

e chama os companheiros a pelejar no limpo, fronte a fronte

Contra o bicho de quatrocentos anos,

Mas cujo fel espesso não resiste

A quarenta horas de total ternura.

 

Peço licença para terminar

Soletrando a canção da rebeldia

Que existe nos fonemas da alegria:

Canção de amor que eu vi crescer

Nos olhos do homem que aprendeu a ler”. (Thiago de Melo, 1965)

 

Assim, findo esta homenagem reunindo sete substantivos, entre outros, que marcaram o legado de uma educação amorosa e libertadora motes da luta permanente do grande educador Paulo Freire: Amor, Ética, Consciência, Reciprocidade, Tolerância, Utopia, Esperança.

Uma Pedagogia que liberta faz valer uma educação que tem como calçada esses pilares, mas é transformando em verbos que se põe em marcha. Tolerar, Utopiar e Esperançar para lembrar que “quem espera na pura espera vive um tempo de espera vã”.

Por isso, enquanto te espero trabalharei os campos e conversarei com os homens. Suarei meu corpo, que o sol queimará, minhas mãos ficarão mais calejadas, meus pés aprenderão os mistérios dos caminhos; meus ouvidos ouvirão mais; meus olhos verão o que antes não viam(...) Meu tempo de espera é um tempo de quefazer. Desconfiarei daqueles que virão dizer-me em voz baixa e precavidos: É perigoso agir, é perigoso falar, é perigoso andar, é perigoso esperar, na forma em que esperas (...)”.

Desconfiarei daqueles que virão dizer-me debochados e estúpidos: é perigoso tomar vacina, é perigoso ficar em casa, é tolice usar máscara, adquira este kit de saúde, que suspendam a vacina para adolescentes, a CPI é idiotice, professores não têm muita importância, “já têm demais”, “universidade é para poucos”, “Paulo Freire é um energúmeno”. Só estupidez enovelada com ignorância e ódio.

Não é somente para desconfiar, mas contestar, contradizer. Como se enganam. Paulo Freire, ídolo e referência da educação mundial, patrono da educação brasileira.  Educador amoroso que só fez o bem a humanidade.

 

*Eliana Romão é professora do Departamento de Educação da Universidade Federal de Sergipe.

 

 

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